Pode-se dizer que a cozinha mineira possui sabor universal se feita com o saber de suas tradições, já que negros, índios e brancos deixaram nela suas marcas. Possui é verdade, por razões históricas, uma predominância dos hábitos e sabores afro-indígenas sendo abundante a presença do urucum, da mandioca, do milho e de brotos nativos.
A influência afro-indígena marca de forma mais profunda a formação da típica cozinha mineira. Os alimentos e utensílios dos primeiros tempos serão os indígenas: a mandioca, os inhames, o milho, a caça, a pesca, assim como, potes, balaios e panelas de barro, dentre tantas outras influências culturais, religiosas, rítmicas, decorativas e curativas.
A chegada dos primeiros negros e negras, para abastecer as minas de mão-de-obra escrava produz fortes influências nos mais diversos aspectos da nova cultura local. Com relação à culinária, pode-se dizer que houve um perfeito entrosamento entre índios e negros no que diz respeito ao preparo, hábitos e uso de produtos alimentares, por se tratar de duas culturas com traços tribais similares. Assim, os primeiros vestígios da culinária mineira começam a se formar por mãos indígenas e africanas.
Já a influência portuguesa, aparece antes nas questões administrativas e fiscalizadoras, para mais lentamente marcar presença em nossa cozinha e hábitos do cotidiano. Em primeiro lugar, isto se deveu ao fato de que sendo "donos" não eram a mão-de-obra, não se ocupavam do trabalho, mas da sua organização, portanto não punham a "mão na massa". Em segundo lugar esta influência virá de forma mais definitiva com a chegada de suas famílias, de suas senhoras que então trazem novas receitas, louças e impõem toques de requintes nas mesas mineiras.
Resultante destas três culturas, sem o uso de temperos fortes, o uso abundante do limão e da cachaça no preparo das carnes, de pouquíssimo sal e gordura só para o refogado e a conservação das carnes, colorida pelo urucum e pelos brotos nativos, o sabor da típica cozinha mineira faz fama além de suas montanhas.
Dos estudos que fiz e da minha intimidade com a cozinha mineira através de tantos anos, entendo que ela merece ser considerada como cozinha nacional por ter, a um só tempo, assimilado e preservado de forma muito equilibrada a influência culinária e cultural dos três etnias formadoras do povo brasileiro.
A Cozinha da Fazenda e a Cozinha dos Tropeiros
Há que se dizer ainda que para conhecer a cozinha mineira deve-se caminhar por duas trilhas: uma que leva à fazenda e outra usada pelos tropeiros. A cozinha que se faz nas fazendas é molhada, o angu e a couve são entremeios certos e necessários já que as carnes são geralmente refogadas e servidas com suculentos caldos; a verdura é farta, pois, não se concebe uma fazenda sem horta nestas Minas Gerais. Nas fazendas tinha-se tudo à mão e podia-se ter diariamente verduras e legumes frescos, tudo sempre picado na hora de refogar para não perder o suco e manter suas cores fortes o que apura o paladar e encanta os olhos. Na cozinha da fazenda, há que se relevar o frango ensopado com quiabo, a couve e o imprescindível angu. O frango com quiabo recebe em Minas uma fama especial por ser uma tradição mantida em todas as nossas mesas e invariavelmente servido nas fazendas, ao pé do fogão de lenha, temperados com os famosos "casos mineiros". Têm-se ainda as carnes ensopadas como a costelinha e a rabada; a canjiquinha e o ioiô com iaiá; os brotos nativos como a samambaia, o ora-pro-nóbis e o agrião. Tudo isto entremeado, é claro, de uma gostosa pimentinha e das pingas mineiras. Em síntese, a cozinha da fazenda se compõe de pratos suculentos que são em geral acompanhados de caldos e molhos.
A cozinha do tropeiro já apresenta outras características. A tropa era um conjunto de burros conduzidos pelos tropeiros. Iam e vinham, traziam e levavam cachaças, sementes, o precioso e raro sal, vasilhames, tudo enfim que se necessitasse transportar e comercializar. A tropa levava consigo a cozinha volante que era acondicionada em bruacas de couro. Os alimentos tinham que ser duráveis e secos. As carnes salgadas ou já feitas e guardadas em recipientes com gordura para se conservarem. Usava-se também o que se encontrava pelos caminhos como brotos e caças.Os caldeirões de ferro eram dependurados sobre fogueiras e fazia-se a refeição. A cachaça era acompanhamento certo para uma gostosa prosa.
A cozinha que alimentava os tropeiros era seca, a farinha era "matutagem" de primeira necessidade dentro dos seus embornais. Em uma palavra a cozinha dos tropeiros era ambulante. Ela levava consigo só o que não era perecível. Assim, seu cardápio era composto de carnes conservadas em gordura ou no sal, feijão tropeiro, brotos nativos encontrados a cada parada.Tudo feito para cumprir seu destino: o de seguir viagem.
Preservação da Culinária e da História
Registrar, ressaltar e preservar a culinária mineira é fazer o mesmo por sua história. A história atual já demonstrou fartamente a importância dos aspectos cotidianos e rotineiros para a compreensão de um povo e de seus movimentos históricos. O cartão de visitas de um local é a sua cozinha, ela ensina pelo seu sabor os seus saberes. Além do mais, a tradição da comida mineira tem se mantido através do tempo de forma mais enraizada seja pelo modo de ser reservado de sua gente, seja por seu aspecto geográfico que a protege e a resguarda. Resta ainda salientar uma importância mais: das etnias formadoras do povo brasileiro e dos seus traços culturais, pode-se perceber, do ponto de vista da culinária, se não dos outros mais, uma manifestação mais marcadamente indígena, africana ou européia nas diferentes regiões do território nacional. Saboreia-se a cozinha indígena principalmente no Norte, no Centro-Oeste e no Espírito Santo. A Bahia, em particular e em partes do Nordeste, sente-se com maior intensidade os sabores da África. De igual forma, percebe-se melhor o gosto europeu no Sul do Brasil. Na região Sudeste, encontra-se Minas com uma cozinha que faz a síntese e expressa a um só tempo: a crença, o gosto, o saber e os sabores afro-indígena e português.
Com destaque para a região mineradora, este mesmo equilíbrio pode ser visto em qualquer um dos recantos de Minas muito embora se reconheça a diversidade dos seus aspectos históricos e geográficos. Assim, de acordo com eles, ressaltam-se hábitos; criam-se e apuram-se paladares; surgem tradições alimentares próprias.
E o Norte de Minas, em toda a extensão das margens do Rio São Francisco, com suas incontáveis fazendas de gado de corte, consome peixes em quantidade e pode oferecer, como em nenhum outro lugar, carne de sol capaz de seduzir qualquer paladar. O sul, além da riqueza agrícola por solo tão fértil, mostra vocação ao gado leiteiro e produz fama com seus laticínios e seus finíssimos doces. Do Triângulo, a tradição doceira de Araxá e a abundância do milho: "ouro em penca" nós mineiros aprendemos a chamá-lo. Do milho farto: receitas sem igual de pamonhas; tradição do angu lavado; bolos, mingaus, broas... E quem sabe, se a tamanha força do milho nesta região, não é razão do gosto pelo açafrão, de cor amarelada como o milho, que aí supera o uso do urucum, tão do gosto do Nordeste de Minas? Na região do Cerrado, reina o pequi: pequi com arroz por todo o cerrado; licor de pequi, por quase toda Minas, embora saído mesmo das entranhas de Curvelo. Na Zona da Mata, a tradição do plantio da cana e as melhores goiabadas de Ponte Nova. O Nordeste de Minas nasce onde nasce o Rio Jequitinhonha e o Rio Doce. Por lá tem-se de tudo um pouco do que é tão típico em cada canto de Minas. Talvez, por conta de tantas e tamanhas montanhas, por lá permaneceram as mais preciosas tradições de nossa cozinha original, que toda Minas Gerais deve saber se orgulhar e preservar!
Por Dona Lucinha Nunes